sábado, 21 de agosto de 2021

Borboletas e flores



Por Erenildo João Carlos

Um certo dia, um destes que amanhece com o céu azul e ensolarado, notei algo, que sempre vi e vejo em situações similares, mas que nem sempre tenho consciência para observar, admirar e refletir sobre o que ele sugere e provoca. 

Vi borboletas e flores, ou melhor, borboletas voando sobre as flores entreabertas, recebendo a luz e o calor solar. Vi livres borboletas, voando de um lado para o outro, pousando nas flores. Vi flores, sendo tocadas e acariciadas por elas. Vi flores, com suas pétalas abertas para abraçá-las.

Isso aconteceu durante uma de minhas caminhadas matinais. Momento em que fui surpreendido com essa linda cena. Nem sempre comum, mas sempre possível em tais condições. Caminhadas que faço, não para ver e encontrar, intencionalmente, borboletas ou flores, mas para respirar mais fundo, oxigenar o cérebro, ativar a circulação sanguínea, movimentar as articulações, fazer pulsar mais rápido o coração, ao tempo que, aproveito, também, para refletir, pensar.

Se caminhar faz bem e é bom, caminho! Durante o caminhar, aproveito para pensar livremente. Sentir e experimentar o fluxo do pensamento circulando em mim, em minha mente, ao tempo em que o ar entra e sai, se põe dentro e fora de mim, ao ser inspirado e expirado. Um excelente exercício de dobrar-se sobre mim mesmo, de interiorização e exteriorização do ar e do pensamento, que flui livremente, sem foco e disperso, ou com foco e centrado. 

Um pensar, certamente, que, na maioria das vezes, se põe livre de a priori, pois se move e emerge a partir do acaso dos acontecimentos que aparecem para mim no intervalo, sempre finito, mas profundo e envolvente, da caminhada. Eventos que ora aparecem diante de mim, capturando o meu olhar, olfato, tato ou audição, como o caso das borboletas e das flores; ora que se colocam dentro de mim, inquietando-me, provocando-me, incitando-me a refletir sobre ideias, palavras, imagens, toques, sentimentos, desejos, sonhos, angustias, medos, escolhas, decisões a serem tomadas, tal como o caso da liberdade das borboletas.

Foi em uma dessas manhãs de sol e céu azul, que vi muitas borboletas voando de um lado para o outro; cortando o vento e a brisa que tocava singelamente meu rosto, meu corpo. Borboletas, diante de meus olhos e olhar, cruzando o espaço do céu, do entre folhas, árvores e flores. Borboletas voando sem rumo, sem sentido, sem direção, livres. Voos curtos, finitos, caóticos, incertos, fugazes e volúveis.

Nesse ínterim, algo chamou minha atenção. Notei que o voo das borboletas, mesmo graciosos e belos, por conta da delicadeza de suas asas e beleza da combinação de suas cores, não eram voos altos, velozes e ousados, como os feitos pelos pássaros, que também cruzavam o mesmo espaço. Eram voos tímidos, singelos, tranquilos. 

Contudo, o que de fato que me tocou, fazendo-me pensar e refletir, naquela manhã, foi o acontecimento de à cada voo, as borboletas pousarem em flores, diversas, diferentes e sequencialmente.  Isso fez-me pensar sobre a possibilidade de não haver preferência, gosto, escolha no ato de voar e pousar das borboletas. Observei que naturalmente elas pousavam, ficavam um tempo e, depois, iam embora, como se nada tivesse acontecido. Seguiam rumo à outra flor, aleatória e costumeiramente. 

Interessante, pensei, as borboletas pousavam em qualquer flor, pelo simples fato de uma flor ser uma flor! Que triste, pensei, ser borboleta, se assim for! Não seria triste, pensei, ser livre para voar um voo sem sentido, sem proposito? Essa é a liberdade das borboletas? Voar sem saber para onde ir, sem escolher em que flor pousar? Triste liberdade, pensei, se assim for!

A ação de voar todos os dias fez da liberdade uma rotina? Voar para aqui e para ali. Voar por voar não seria como se elas não fossem, de fato, livres, como se a liberdade, que aparenta ter, não existisse em seus voos? Voos naturais, não livres, impostos por uma espécie de destino, de sina, lançada pela mãe natureza às lindas, delicadas e maravilhosas borboletas. 

A escolha de voar e de pousar aparenta ser inexistente, aleatória e sem sentido! Voar por voar, pousar por pousar em uma flor qualquer não seria um acontecimento possível, produzido pelo acaso e pela rotina de voar e pousar gerado pela força da natureza? Assim, basta ser flor, para que a borboleta pouse. Que triste liberdade, pensei! Será que, para uma borboleta, qualquer flor é uma flor? Será que basta, para ela, que apareça uma flor bonitinha, sedutora para nela pousar? Ai, das borboletas, pensei! Elas não tem propósitos, pois pousam, selvagemente, por impulso incontido, incontrolável em busca de néctar! Assim sendo, pensei, como seria triste e vazia suas vidas, sem as flores! 

Ai das borboletas, se seus voos forem voos movidos pelo puro instinto em busca de néctar, nesse caso eles não seriam livres, pois não haveria a liberdade de voar e de escolher em qual flor pousar! Ai das borboletas, pensei, pois, se assim for, sua liberdade é uma ilusão, vez que seus voos livres resultariam da força da natureza, que lhe impõe a rotina de voar para aqui e para ali, de pousar, inexoravelmente, em qualquer flor, a qualquer momento. Nesse caso, o gesto de pousar e se deixar pousar não seria puramente selvagem, instintivo, movido pela necessidade incontrolável de saborear e se alimentar de néctar?

Será que esses voos são livres, se, de fato, a liberdade implica poder escolher, se encantar por esta ou aquela flor, em querer pousar ou não em uma flor singular, em poder dizer, enfim: essa foi a flor que escolhi? De dizer e fazer: nela, quero pousar, sentir seu cheiro, seu sabor, admirar suas cores e formas, apreciar sua leveza e doçura, deslizar meu toque em suas pétalas! Nesta flor quero pousar, pois foi ela que eu escolhi. Ela, eu quero sentir e me deixar sentir! 

Ai das borboletas se não fossem as flores! Triste, muito triste seria, mesmo sendo livres para voar, se elas não pudessem escolher em qual flor pousar e repousar: nessa, nesta ou naquela! 

No entremeio do movimento das borboletas que cruzavam o céu azul e ensolarado daquela manhã, do ar que penetrava e saia de mim, do suor que escorria em meu rosto e evaporava com o calor do sol, pensei: liberdade não seria a possibilidade de querer e poder voar ou não voar, de escolher pousar ou não pousar, nessa, nesta ou naquela flor? Liberdade não seria poder dizer, sentir e fazer: escolhi esta flor, nela quero pousar, com ela e nela quero ficar?

Caminhando um pouco mais, pensei, retomando a mesma ideia: ora, as borboletas não são livres se voam, simplesmente por que voam, daqui para a li, de lá para cá, de uma flor para outra, em busca de néctar, porque assim teria que ser. Se elas voam e pousam, porque isso é natural, destino ou sina, não são livres! 

Livres e felizes seriam, borboletas, homens e mulheres, que livres fossem para escolher conscientemente, se livres são, querem e podem. Ai dos homens e das mulheres, impossibilitados de decidir por si, assim como as borboletas que não são livres para voar, escolher e dizer por si mesmas: esse voo quero fazer, deste modo e não de outro; nesta flor quero pousar, deste jeito e não naquela!

Ah, se as borboletas pudessem dizer às flores: livremente sinto seu cheiro, seu gosto, sua leveza, sua doçura e sua beleza, pois lhe escolhi e você, a mim. Caminhando e pensando, imaginei a borboleta dizendo isso para a flor e a flor à borboleta, ao pôr-se, sorridente e feliz, de braços abertos para ela! Estou aqui, pouse em mim! Ai das borboletas, se não fossem as flores e das flores se não fossem as borboletas! 

Como são lindas e maravilhosas as borboletas e seus voos; as flores, suas cores, formas e cheiros; a liberdade de se tocarem espontânea e livremente, sentindo-se reciprocamente em meio a brisa e ao sol da manhã!

 

João Pessoa, 21 de agosto de 2021.

domingo, 1 de agosto de 2021

Relações de dominação

   

                                                                                               
  Por Erenildo João Carlos


Um dia desses, eu estava pensando sobre as coisas que nos cercam e as relações que estabelecemos com elas. 

Para vivermos, produzimos e consumimos coisas. Fazemos, compramos, vendemos, damos, recebemos, doamos coisas. Trabalhamos em troca de um salário para comprar coisas, para pagar a conta das coisas que compramos. Toda economia se move em torno disso. Produzir, reproduzir e consumir coisas. Erigimos lugares para elas. Em função dela vivemos, nos movemos e existimos. Em razão delas dirigimos nossas vidas, fixamos nossos sonhos, desenvolvemos nossos desejos, aprendemos a sentir e ter prazer, elaboramos nossos planos e projetos de vida. 

Em face do lugar e do status que as coisas têm em nossas vidas, torna-se óbvio que elas aparecem como sendo a fonte de nossa necessidade, segurança e conforto. A fonte da vida  e da felicidade. Nesse sentido, sem as coisas não teríamos dignidade, liberdade ou valor. Desse modo, tal como elas estão postas e dispostas, impostas e naturalizadas, elas ocupariam um lugar hierarquicamente superior as pessoas, vez que sem elas, nada seríamos. As coisas são; nós, gente, não somos. 

Ora, absorto nesse estado de consciência reflexiva, surpreendi-me com o fato, óbvio, porém nem sempre consciente, de que as coisas são coisas e de que nós, somos nós, isto é, gente, pessoa. 

Entretanto, ao pensar um pouquinho mais sobre isso, adentrando-me no complexo das relações entre nós e as coisas, notei uma contradição e profunda inversão de valor: a íntima relação que temos com as coisas, faz-nos ser, nessa condições, como elas, coisas. 

Ou seja, ao nos relacionarmos uns com os outros, ou conosco mesmos, em vez de nos tratarmos como pessoas, em certa medida e de certo modo, reproduzimos em nossas relações intra e interpessoal, o modo como nos relacionamos com as coisas. Coisificamo-nos, reciprocamente. Provavelmente, se encontre aí, nesse modo de relação social, a origem das múltiplas formas de relações de dominação. 

Ora, dominação é um tipo de relação que temos com as coisas. As coisas compramos, vendemos, produzimos, damos, trocamos, doamos, jogamos fora, quebramos, destruímos, deformamos, arranhamos, torcemos, chutamos, pisamos, desmontamos, manipulamos, brincamos, abandonamos, substituímos, colecionamos, oferecemos, consumimos, descartamos, usamos e abusamos. 

As coisas não sofrem, não se alegram, não sentem, não pensam, não falam, não refletem, não dialogam, não sabem, não tem consciência, não sorriem, não se sentem tristes, nem felizes, não sonham, não planejam, não cultivam, não cuidam, não amam, não choram, não se encantam, não se decepcionam, não nascem, não morrem, não sentem frio ou calor, nem fome ou cede. 

As coisas não precisam de abrigo, de serem amadas, de terapia. As coisas não precisam se alimentar, se confessar, estudar ou aprender. As coisas não lutam, não buscam sua libertação, pois não são nem se sentem oprimidas, dominadas, exploradas, expoliadas, traídas, envergonhadas, abandonadas, desencantadas, presas, assassinadas, discriminadas, assediadas. 

As coisas não são gente, não são pessoa,  por isso lhes falta a vontade de ser e viver, de lutar e se libertar, de sonhar e desejar, se sentir prazer e ser feliz, de exercer a liberdade e usar a inteligência para buscar alternativas que solucionem seus problemas, que resolvam e organizem suas bagunças. As coisas não se libertam, pois estão presas a seus donos.

Com efeito, talvez esteja aí a razão das pessoas estabelecerem relações que não são próprias das relações entre pessoas, vez que as relações de dominação são típicas das relações que estabelecemos com as coisas, ou das coisas com as coisas. 

Ora, se tratamos as pessoas como coisas, se nos vemos e nos sentimos como se coisas fossemos, cultivamos e transmitimos a ideia, desenvolvemos práticas, modos de vida, sentimentos e ideologias de que as pessoas podem ser propriedades e donas das outras. 

Nessas condições, certamente poderemos não nos sentir dominados, oprimidos, explorados, assediados, desrespeitados, desumanizados muito menos dominando o outro. Haveria, nessas condições, uma naturalização recíproca da aceitação da dominação. Uma espécie de acordo tácito, instituído socialmente, no qual estamos inseridos e aprendemos como normal, legitimo  e natural o ser dominador ou dominado.

Ora, se vivemos, existimos e nos movemos em relações sociais de dominação, não seria um desatino perguntarmos: Quem é seu dono? Você é dono de quem? 

Nessas condições, a liberdade é uma utopia e a libertação, uma necessidade de afirmação de que somos pessoa, não coisas. Nessas condições, de fato precisamos de uma 'pedagogia do oprimido', de 'práticas educativas para a liberdade' e de 'ações culturais para a libertação'. 

Precisamos cultivar relações próprias das típicas relações entre pessoas. Precisamos rejeitar a ideia de que as pessoas são coisas. Precisamos resistir, desconstruir às relações de dominação, seja ela qual for, seja ela onde estiver. Precisamos desnaturalizar o sentimento naturalizado da dominação.

Pessoa é pessoa. Coisa é coisa. Somos pessoa, não coisa. Gente é o que somos.

Não temos donos, nem somos donos de outras pessoas.


João Pessoa, 01 de agosto de 2021.


sexta-feira, 30 de julho de 2021

Sobre a finitude

Por Erenildo João Carlos

Com o aparecimento do Covid-19, no fim de 2019, na China, produziu-se na história presente um instante marcado pela incerteza da capacidade de conservação da vida pessoal, coletiva e planetária das pessoas.  Milhares de indivíduos morreram no mundo e no Brasil. Outras tantas, ficaram isoladas, ilhadas em suas casas, bairros, estados e países. Outras entraram em estado de depressão, adoeceram emocionalmente, precarizando suas relações pessoais, familiares  e sociais.

A ausência de conhecimentos específicos sobre a natureza do vírus, a falta de vacina apropriada, o distanciamento social, as relações interpessoais fragilizadas e o caos mundial gerado na gestão do Estado, da economia e da dinâmica cotidiana da população acentuou a consciência da finitude da vida e dos limites da capacidade humana de conservá-la individual e coletivamente.

Não obstante, a finitude ser uma experiência concreta irrefutável, por conta de que ela se põe diante de nós em tudo, nem sempre temos a consciência de sua realidade efetiva e de suas implicações sobre a vida natural e sociocultural das pessoas, das famílias e das relações interpessoais. Fundado na evidência da experiência, podemos dizer que tudo que nos cerca carrega a marca da finitude e que, por mais que seja a duração de algo, ele não deixará de ser finito.

Certamente, a finitude diz respeito ao tempo, à medida da duração das coisas. Entretanto, quando pensamos a finitude relacionada à outros aspectos de nossa realidade subjetiva e objetiva, notamos que o fim de algo não é produzido, simplesmente, pela temporalidade que as coisas, a vida e as relações possuem, mas também, por questões subjetivas e objetivas, saberes e emoções, desejos e medos, esperanças e frustações, possibilidades e expectativas, palavras e toques, ditos e não ditos, verdades e meias verdades, imaginações e dissimulações, fatos e interpretações. 

Em certa medida, somos produtores da duração das coisas, do tempo que elas terão em razão do que fazemos com elas. Somos responsáveis, em parte, por aquilo que aparece e desaparece em nossas vidas, bem como por sua duração e finitude. 

Com efeito, nossas ações tanto fazem aparecer, quanto desaparecer; tanto constroem, quanto destroem; tanto edificam quanto interditam o vir a ser das coisas, dos acontecimentos, dos processos, das relações, da vida, do encantamento que  sentimos, de nossas esperanças e planos.

No existir da finitude das coisas se encontram, portanto, nossas pendências e bagunças subjetivas e sociais como razões da finitude das coisas. 

Interessante é também notar que o bom acaso ou a intencionalidade fazem aparecer coisas lindas e maravilhosas em nossas vidas, que, mesmo sendo bem cuidadas e cultivadas, movidas pelo entusiasmo e encantamento que tenhamos, contraditoriamente podem ser desconstruídas por nossas próprias vontades, decisões livres ou impostas, nossas pendências e histórias pessoais e sociais mal resolvidas, nossas bagunças. 

Somos, sim, corresponsáveis pelo desaparecimento ou conservação delas, acelerando o fim ou prolongando a duração do que de bom ou de ruim nos acontece.

É fato, a finitude é uma realidade, mas há coisas na vida que gostaríamos de conservar, sobretudo aquelas que nos faz bem, que é bom, que nos edifica e humaniza, enquanto pessoa singular e subjetiva, seja enquanto modo de organização social e objetiva. Nesse ínterim, se encontram a vida, tão rara, a amizade, o carinho, a confiança, o respeito, o cuidado, o encantamento, a poesia, a liberdade e a ética. 

A consciência do valor de tudo isso, das oportunidades que a vida em vida nos proporciona não deveriam ser desperdiçadas. Ao contrário, deveriam nos mobilizar e motivar a resolver nossas pendências e bagunças a fim de sermos felizes conosco mesmos e com os outros, a estabelecer relações amorosas de encantamento e gratidão, relações saudáveis e não doentias, falsas e dissimuladas relações fundadas, de fato, no bem quere recíproco e não em ações violentas, agressivas, rancorosas, ingratas prenhas de desafeto e falta de cuidado consigo e com o outro, que sequestram a subjetividade e o direito de sermos felizes, que nos fazem coisas possuídas pelos outros. 

Com efeito, precisamos de relações saudáveis que valorizem, simultaneamente, o eu e o outro e o crescimento recíproco de ambos; relações onde um e o outro não sejam tratados como objetos, que se usa, abusa, descarta, brinca, destrói e joga fora: relações desumanizadoras onde um se sente dono do outro. Precisamos de relações intersubjetivas e sociais humanizadas, centradas no valor da pessoa humana.

Vida e felicidade são tão raras e preciosas! Por que perdê-las? Por que desperdiçá-las? Depois que a vida vai, não volta mais; depois que a felicidade arrefece,  não sabemos se iremos reencontrá-la novamente. Depois que a incerteza e desconfiança nos afeta, o desencanto nos toma. Por isso, é sábio não permitir que nossas pendências e bagunças passadas e presentes, não resolvidas ou mal resolvidas, nos impeçam de viver e ser feliz. Lidar com elas e resolvê-las é necessário.

Na arte do bem viver se encontra a sabedoria de aprender a brincar de viver e ser feliz na finitude que temos disponível e possível do tempo de vida que temos. Encantar-se pela vida, enquanto a temos; ser feliz enquanto podemos: eis um princípio sábio gerador de paz e felicidade. 

Quanto tempo você tem para viver e ser feliz? Eis a questão fundamental de nossa condição humana. Quanto tempo nos resta? Viva e seja feliz a cada instante, mesmo sabendo que ele, o instante, é finito. Se possível, conserve seu bem querer infinitamente. Se possível faça o impossível para tecer seu tempo finito de vida de infinitos finitos de paz e felicidade: eis uma das lições que tenho aprendido com o caos da Pandemia!


João Pessoa, 30 de julho de 2021.


sábado, 28 de outubro de 2017

Liberdade de pensamento e expressão I




Por Erenildo João Carlos 



Provavelmente, você tenha ouvido e pronunciado afirmações do tipo 'você fala como o homem da cobra', 'você fala pelos cotovelos', ou, ainda, 'parece que você tomou água de chocalho'. Esses são alguns ditos populares que, de um certo modo, indicam o livre exercício do pensamento e da expressão. 

Liberdade praticada em diversos lugares e momentos do cotidiano; em espaços públicos e privados. Liberdade exercida pelos mais diferentes tipos de pessoas, físicas e jurídicas, em situações de conversações dos mais diferentes gêneros. Liberdade amplificada por meio de suportes tecnológicos e midiáticos: livros, jornais, boletins, revistas, imagens, radio, televisão, internet, celulares, tabletes, computadores, blogs, sites, facebook, twitter, instagram.... 

Em face disso, várias questões e desafios podem ser formulados. Vejamos alguns: Quais sãos os limites e possibilidades do exercício da liberdade de pensamento e de expressão? Qual a responsabilidade individual e institucional resultantes dos efeitos e consequências das coisas ditas e escritas? Como distinguir o certo do errado, o verdadeiro do falso no universo dos pronunciamentos? Que atitudes e comportamentos democráticos são necessários para a convivência social pacífica e fraternal entre os que assumem diferentes posições e que expressam conteúdos distintos, muitas vezes, antagônicos em suas manifestações? Os distintos espaços sociais de aprendizagem, a exemplo dos familiares, escolares, empresariais, midiáticos, religiosos, sindicais e partidários, são lugares onde ocorrem a aprendizagem do exercício pleno da democracia ou, lamentavelmente, onde se aprendem posições sectárias, dogmáticas e polêmicas, cuja pratica institucional legitimada acaba por interditar o exercício da liberdade de pensamento e de expressão, bem como a constituição de sujeitos democráticos e fraternos? Cultivamos nesses lugares o exercício do livre pensar e de expressão, do diálogo e do entendimento construtivo, ou da censura, da interdição, da polêmica, do monólogo, da ofensa e do ódio? Se do ponto de vista da ordem jurídico-político constitucional somos um pais democrático, culturalmente poderemos dizer o mesmo?

O fato é que, embora tenhamos muito o que aprender e construir, não vivemos sob a égide de uma sociedade totalitária, do pensamento único, seja ele de cunho ideológico, político, teológico ou mercadológico. 

Portanto, gostemos ou não, concordemos ou não, o fato é que a 'liberdade de pensamento e expressão' é um principio que faz parte da dinâmica cotidiana e institucional das sociedades democráticas. Por isso, mesmo que discordemos do que seja dito, mesmo que nos posicionemos contra o que ouvimos, lemos e vemos; mesmo que consideremos absurdo e inaceitável, duvidoso e mentiroso, imaginário, ficcional e prejudicial o conteúdo das coisas pronunciadas, anunciadas, proferidas, propaladas, difundidas, postas em circulação, defendemos o direito privado e público do dizer e do pensar livre, sem censura. 

Em suma, embora, o conteúdo do que seja dito possa não ser verdadeiro, legitimo, certo e apropriado, a partir de determinada perspectiva, o fato é que, nas sociedades democráticas, existe o direito de dizer 'isto ou aquilo', o direito da livre manifestação do pensamento e da expressão. 

Certamente, não sou a favor da cultura do silêncio, como também não sou do anuncio do ódio e da descriminação. Entretanto, não posso, em nome de minha discordância, proibir quem pensa e diz assim, interditar o seu direito de dizer e de pensar diferente.

Preciso, isto sim, em face desse reconhecimento, aprender a ouvir e a falar, a dialogar e a conviver com os diferentes e os antagônicos, que falam 'como o homem da cobra', 'pelos cotovelos', como quem 'tomou água de chocalho', por conta da observância ao princípio democrático da liberdade de pensamento e de expressão, mas também, e sobretudo, por conta de outro princípio, fundamental a vida humana, o da sociabilidade ética do cuidado e do dizer.

domingo, 26 de junho de 2016

DITOS IDEOLÓGICOS II




Por Erenildo João Carlos

Na reflexão anterior, assinalei que o significado da palavra ideologia está diretamente relacionado às regras de funcionamento do dizer acionado pelos falantes e interlocutores, envolvidos em determinadas conversas. Destaquei também, em determinado ponto, que, em certos casos, o termo ideologia aparece associado aos ditos verdadeiros e falsos. Nessa perspectiva, a depender da natureza da formulação proferida, ou seja, do que se fala sobre alguma coisa, o dito poderá ou não informar algo efetivamente existente, proporcionando, ou não, ao ouvinte, o conhecimento dos assuntos tratados. 

Ao analisar mais detidamente a questão da ideologia nos ditos verdadeiros e falsos, nota-se que, neles, o significado do termo ideologia é constituído em função da noção de representação simbólica das coisas existentes. Ou seja, da ideia de que determinados símbolos servem para tornar presente algo ausente, representando-o. Nesse processo de representação da coisa ausente, os símbolos selecionados e empregados teriam várias funções, a exemplo das comprometidas com a lembrança, o exemplo, a ilustração, a explicação e, em suma, o entendimento da coisa sobre a qual se fala.

Ora, se assim for, pode-se dizer, a partir da análise da presença da ideologia nos ditos verdadeiros e falsos, que há um modo possível de existência da ideologia que requer, necessariamente, o estabelecimento de um vínculo entre seu significante e o significado representações simbólicas, de modo tal que essa associação funcionaria como a regra central da elaboração das coisas a serem pensadas e ditas.

Tal modo de existência evidencia um posicionamento que possibilita identificar e descrever as representações simbólicas como o produto da atividade racional do pensamento (ideias, conceitos, teorias, esquemas, imagens, modelos etc.) sobre as coisas existentes; assim como a expressão de um modo imaginativo da razão humana, cujo caráter criativo e inventivo peculiar possibilitaria a codificação de se dizer o que se pensa a partir de outra racionalidade, a poética. 

Aparecendo como expressão e objetivação do movimento racional e imaginativo do pensamento humano, a ideologia, enquanto representação simbólica, tanto pode ser acionada pelos dizeres ocupados com a produção, difusão, apropriação, análise e crítica dos ditos verdadeiros e falsos, a exemplo dos formulados no campo dos saberes filosóficos e científicos; quanto pelos dizeres que operam com o imaginário e o fantástico, a exemplo dos ditos elaborados no território da literatura, das artes e dos mitos. Nesses termos, os ditos ideológicos tanto podem ser falsos ou verdadeiros, como imaginários e fantásticos.

Embora a ideologia, nos casos aqui analisados, apareça com uma dupla função mediadora - a de mediar simultaneamente, por meio de formas simbólicas, a relação entre o pensamento e as coisas e entre as falas e os sujeitos interlocutores -, pode-se concluir, de forma geral, o seguinte: o significado do significante ‘ideologia’ depende das regras de funcionamento do modo como (a) o dizer opera e se efetiva, concreta e socialmente, nas experiências e situações conversacionais; como (b) os sujeitos falantes acionam os saberes que se encontram disponível no arquivo cultural da sociedade; e como (c) o dizer põe em movimento o jogo das intenções e dos interesses, dos assuntos e dos problemas pautados no curso da conversa empreendida.

Descrito precisamente assim, isto é, como representações simbólicas, o termo ideologia aponta, a um só tempo, seu reconhecimento como um modo específico de pôr as falas em funcionamento no jogo das conversações cotidianas, assim como um campo de reflexões, de estudos e de investigações sobre a natureza e a legitimidade dos saberes acionados pelos falantes, sobre os quais podemos nos debruçar e conhecer.

João Pessoa, 26 de junho de 2016.

sábado, 21 de maio de 2016

DITOS IDEOLÓGICOS



Por Erenildo Joao Carlos


Não sei se o leitor notou, nos escritos que tenho produzido e registrado, no contexto desse espaço virtual, que o termo ‘ideológico’ tem aparecido inúmeras vezes. Não obstante o fato de que eu não tenha me ocupado intencionalmente em refletir sobre os ditos e dizeres ideológicos, o termo aparece e circula recorrentemente no seio dos ditos e dizeres investigados. 

Com efeito, a presença regular de formulações ideológicas nas conversações cotidianas sugere a necessidade de uma investigação mais focada a partir de, pelo menos, duas perspectivas: uma, sobre a especificidade de seu modo singular de existência; outra, sobre a função que elas desempenham no funcionamento de outros ditos e dizeres.

Ao revisitar os achados oriundos das escavações reflexivas feitas no âmbito das falas cotidianas investigadas, observo que a suposta ausência de precisão, ou de um sentido único e específico, ocorre por conta do significado que o termo ‘ideológico’ adquire no interior das regras dos ditos e dizeres problematizados por mim, até aqui. Em outras palavras, a evidente imprecisão e concomitante polissemia do termo ‘ideológico’ se explica, sobretudo, pela função que ele assume no exercício da fala proferida pelo falante no cerne de suas conversações.

Constato, também, que o significante 'ideológico' aparece, geralmente, de dois modos: um, positivo; e, outro, negativo. O modo positivo surge, por exemplo, nos dizeres verdadeiros e sinceros. Neles, a palavra ‘ideológico’ adquire, de um lado, uma conotação associada à visão de mundo, anúncio de projetos e de filosofias de vida, horizonte e campo de luta, sentido e valor existencial, assumidos por indivíduos e agrupamentos de sujeitos sociais. Esse entendimento me faz lembrar, por exemplo, a formulação cantada por Cazuza em sua música, na qual dizia: ‘ideologia, eu quero uma para viver’. De outro lado, o termo vincula-se à representação simbólica das coisas existentes, que codificaria e informaria algo efetivamente existente: acontecimentos, processos, relações, jogo de interesses, casos, experiências, situações, dissimulações, simulacros, discursos, práticas, ritos, procedimentos, saberes, valores etc. Esse significado abarca uma série diversificada de representações, a exemplo de saberes, conhecimentos, teorias, conceitos, métodos, concepções, axiomas, princípios, formulas, esquemas, modelos, regras, procedimentos, instrumentos etc.

Na ordem da dupla semântica da positividade, os ditos ideológicos seriam considerados como uma espécie de formulação sincera, pois, de um lado, retratariam o conteúdo real da subjetividade dos falantes, tais como pensam, sentem, desejam, aspiram, entendem e agem. De outro, uma formulação verdadeira, porque proporcionariam ao ouvinte o conhecimento real das coisas existentes, ou seja, dos assuntos tratados no curso da conversação estabelecidas entre os falantes.

Por sua vez, o modo negativo pode ser encontrado, por exemplo, nos ditos e dizeres retórico-pragmáticos. Neles, o termo ‘ideológico’ assume uma conotação vinculada à ideia de mentira, de dissimulação, de jogo vazio de palavras, geralmente, com fins ocultos e prejudiciais aos ouvintes. Nessa perspectiva, ‘ideológico’ seriam todos os ditos que, de um lado, encobrem a intencionalidade do falante, caracterizando-se, assim, pela dissimulação, pelo esconde-esconde, pelo jogo do não dito e do não revelado, pela ordem do segredo, do indizível. De outro, seriam os ditos que produzem o desconhecimento das coisas sobre as quais se diz algo, identificando-se, assim, como uma espécie de formulação falsa, vazia de referência do real, simulacro. 

No jogo retórico da dupla semântica da negatividade, os ditos ideológicos têm, no primeiro caso, a função de esconder, camuflar, escamotear, desvirtuar as intenções, os interesses e os desejos do falante, bloqueando o acesso à sua subjetividade. No segundo, sua finalidade seria a de elidir a realidade, impedindo os ouvintes de conhecê-la, de entender as coisas tais como elas são efetivamente: funcionaria como um dispositivo de interdição do acesso à informação e ao conhecimento necessário ao desenvolvimento do entendimento e da formação de uma consciência fundada na realidade do assunto posto em questão.

Penso que em um cenário cultural e social afeito à dimensão negativa da ideologia, vale à pena refletir sobre as duas possibilidades de aparecimento do termo ‘ideológico’. De modo que estejamos atentos à maneira de apropriação e emprego assinalado na ordem geral de funcionamento dos dizeres acionados pelos falantes em situações concretas. Que possamos ter ciência dos possíveis modos e efeitos, edificantes e destrutivos dos ditos ideológicos, interpostos no jogo das conversações cotidianas que estivermos implicados. Que saibamos acionar o conhecimento como contraponto à negatividade hegemônica dos ditos ideológicos!


João Pessoa, 21 de maio de 2016.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

O DIZER ESPERTO II




Por Erenildo J. C. 


Como foi discutido anteriormente, o modo retórico-pragmático de pôr em funcionamento a fala, a partir da esperteza, proporciona o aparecimento, o cultivo e o desenvolvimento de uma série de ditos e de dizeres, denominados, aqui, de espertos. 

Trata-se, com efeito, de uma espécie de linguagem que utiliza um jogo argumentativo específico, como ferramenta, estratégia ou dispositivo de convencimento e persuasão do outro, no curso de uma conversa, debate, diálogo, em suma, comunicação, cujo objetivo visa alcançar, pela via da esperteza, determinados fins, realizar certos interesses, sejam eles de natureza ideológica, política, religiosa ou econômica.

Um dos efeitos esperados é o de gerar no ouvinte a impressão de que o que está sendo dito seja certo, verdadeiro e sincero. O que não passa de uma falácia, face ao gênero e à natureza do objetivo almejado. Por ser geralmente associado à produção de danos no outro: bens, imagem, prestigio, saber, competência, posição etc., o objetivo é, na maioria das vezes, dissimulado e oculto – um não-dito 

Entretanto, em função da tomada de consciência (seja por descoberta, revelação, denúncia ou delação) de que o sujeito falante não tem comprometimento efetivo com a retidão, a verdade e a sinceridade (confirmada pelo conhecimento de sua trajetória de vida pessoal/profissional, marcada pela esperteza), o ouvinte acaba por não acolher a mensagem formulada e, consequentemente, não se comportar, agir, falar, sentir e pensar do modo esperado, isto é, em conformidade com os fins espertos postos em jogo no horizonte argumentativo da esperteza.

Quando isso acontece, frustrado, decepcionado, o sujeito esperto desencadeia, raivosa e sutilmente, o uso de procedimentos mais agressivos e violentos: de um lado, intensifica e diversifica a série de ditos constituídos pela mentira, pela dissimulação, pelas meias verdades e pelas promessas irrealizáveis; de outro, aciona falas e dizeres, tecidos na ameaça, no medo e na desqualificação do outro e de tudo aquilo que seja contrário a seus interesses.

Não importa como isso será feito no âmbito da série de argumentos que ativará. Poderão ser acionados elementos de diversa natureza e gênero: estórias e experiências pessoais; narrativas de sacrifício, de heroísmo ou de drama locais e sociais; formulações baseadas em mitos, lendas ou ritos convenientes, advindos do saber e da cultura popular; saberes oriundos da erudição, elaborado no âmbito da filosofia, da teologia, da ciência ou do direito. Independente da natureza da formulação, o que interessa são os fins a serem alcançados. Com efeito, na economia dos ditos e dizeres espertos, o que vale é contabilizar o lucro, o ganho, o quanto foi possível obter ‘com o chapéu alheio’, seja ele consumidor ou trabalhador; cidadão, servidor ou governante; mercado, sociedade civil ou Estado; presente, ausente, próximo ou distante.

Vale salientar, no entanto, que a força do convencimento e o efeito das coisas ditas sobre o ouvinte não se encontram tão-somente no âmbito do jogo argumentativo. Seu poder e efetividade concreta são retroalimentadas no seio da cultura da malandragem consentida e compartilhada, que impregna instâncias do Estado, da sociedade civil e das empresas. 

Em outros termos, pode-se dizer que o solo histórico-cultural brasileiro da malandragem apresenta-se como fértil, graças ao nepotismo, à corrupção, ao fisiologismo, ao clientelismo e ao patrimonialismo instalado e institucionalizado. Nele, os ditos espertos circulam de terno e gravata, de salto alto e nariz empinado, de relógio e pulseira de ouro, com ares de prestígio, superioridade e realeza. Nele, florescem e se alastram, ocupam espaços públicos e privados diversos; ganham visibilidade e legitimidade institucional nas câmaras, nas assembleias, nos conselhos, nos colegiados, nos fóruns, eventos, púlpitos e palanques. São ouvidos e vistos em rede de televisão e da internet. Capilarizam-se no cotidiano, alimentando-se por meio de práticas desumanizantes, pautadas na discriminação, na segregação, no preconceito, na interdição de direitos, no puxar o tapete do outro etc. 

No solo histórico-cultural da malandragem, os ditos e dizeres espertos são erigidos à condição de marco de referência da linguagem excelente, parâmetro de sucesso, de eficiência e de eficácia. Graças a eles, aumentam-se as vendas de produtos e serviços; elegem-se candidatos; convertem-se descrentes; mobiliza-se a população; derrubam-se governos; difunde-se utopias e visões de mundo.

Corolário de uma certa cultura e história brasileira, que tanto muitos desejam superar, os ditos e dizeres espertos conferem poder aos malandros para o exercício inteligente e competente, legitimado e compartilhado, do controle e da dominação, realizado, por meio do poder da palavra, no âmbito da gestão das pessoas, das finanças, dos valores, dos sentidos, dos saberes, das palavras e das coisas cotidianos.

Em face do reconhecimento da existência da cultura da esperteza, e dos ditos e dizeres espertos, parece-me que seja prudente o exercício da dúvida metódica diante do que se escuta (lê e vê), mantendo-se sempre em alerta, prevenindo-se e precavendo-se. Ou, como afirma a sabedoria popular: que estejamos sempre ‘com a pulga atrás da orelha’, diante dos que celebram e defendem a máxima do ‘fazer festa com o chapéu alheio’.


João Pessoa, 18 de janeiro de 2016

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

O DIZER ESPERTO I


Por Erenildo J. C. 



Considerando o que escrevi antes, entenda-se os ditos espertos como um conjunto específico e delimitado de formulações, emitidas por meio da fala, que funciona como um dispositivo de convencimento de alguém sobre alguma coisa, e cujo o efeito gerado no ouvinte, corresponda a uma impressão de que o que se diz seja, de fato, sincero, certo e verdadeiro, quando, contrariamente, não é, pois quem pretende ‘tirar vantagem em tudo’ e ‘fazer festa com o chapéu alheio’ não tem, efetivamente, comprometimento com a sinceridade, a correção e a verdade.

Quando algum desses conteúdos e gestos aparecem no contexto da fala, a exemplo de pronunciamentos, anúncios, afirmativas e opiniões, nota-se que a presença da sinceridade, da correção ou da verdade não passa de um meio ou estratégia de demarcação e consolidação de um fim determinado. Fim, geralmente, oculto, dissimulado e secreto. Em outros termos, as formulações com teor de sinceridade, veracidade e correção, no cerne do dizer esperto, são acionadas e postas em jogo, em função de sua utilidade.

Com esse intuito, o falante afeito à cultura da malandragem, enraizado nela e dela se beneficiando, aciona, mobiliza, conferi visibilidade e status às formulações úteis a seus interesses, sejam elas vinculadas ao real ou ao imaginário, ao verdadeiro ou ao falso, ao certo ou ao errado, ao permitido ou ao proibido, à coragem ou ao medo, ao amor ou ao ódio, ao próximo ou ao distante, ao feio ou ao belo, à dúvida ou à certeza, ao legal ou ao negociado, ao científico ou popular, ao elogio ou à desqualificação, à festa ou à segregação.

Visto assim, os ditos espertos se situam no território mais amplo do dizer e dos ditos retórico-pragmáticos, cuja admissibilidade e aparecimento de qualquer formulação somente serão possíveis e permitidos pela utilidade que ela tenha no jogo argumentativo, inteiramente comprometido com a realização dos fins estabelecidos.

Nesse território, pode-se dizer que se encontra uma região, esquadrinhada por uma ordem de fala, centrada e organizada por um gesto de esperteza, que seria a expressão simultânea de uma ação inteligente e eficiente, cujo interesse último seria o de se apropriar da coisa alheia para atender fins próprios, que, oportuna e convenientemente, poderão ser idênticos ou similares, distintos ou antagônicos à vontade do interlocutor presente, de ouvintes ausentes e de instituições existentes.

Jogar o jogo argumentativo da esperteza significa fazer com que as coisas ditas sejam ditas de tal modo, colocadas e dispostas de certa maneira e não de outra, articuladas e significadas em conformidade com o que se quer, ou seja, em função do interesse de expropriação e espoliação do outro, de seus bens, posição, prestigio, saberes, suas habilidades, competências, estética, imagem social, etc., ou da manipulação, dominação e controle de sua vontade, desejos, pensamentos, sentimentos, crenças, esperanças, utopias e ideologias de vida.

Com efeito, a observação sistemática e reflexiva das falas cotidianas indica a existência de um modo de dizer instaurador da esperteza como critério de exercício da fala e de uma espécie de poder argumentativo capaz de convencer alguém ou apropriar-se de algo. 


João Pessoa, 25 de dezembro de 2015

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

OS DITOS ESPERTOS E A CULTURA DA MALANDRAGEM




Por Erenildo J.C

É comum escutarmos, em certas situações, a exemplo da que o Brasil passa hoje, a frase de que alguém tem o costume de ‘fazer festa com o chapéu alheio’. Esse dito popular, rico de significações, indica, no nível da vida cotidiana, a presença de um modo de tratar as coisas alheias como se fossem próprias, ou seja, celebra-se, comemora-se, planeja-se, intenciona-se algo que não se pode ter ou fazer, por si mesmo, a não ser contando com os recursos de outrem. 

Ora, quando essa atitude ou conduta ocorre com regularidade, isto é, quando serve de regra para a ação, podemos levantar a hipótese da existência de indícios de uma cultura marcada pelo viés da malandragem e da corrupção, instauradora de um jogo de relações sociais movido, fundamental e exaustivamente, por uma série de ações, comportamentos, atitudes e procedimentos pautado em máximas do tipo: ‘tire vantagem em tudo’, ‘os fins justificam os meios’, ‘que vença o melhor, o mais forte ou mais esperto’ e ‘pode quebrar ou levar, pois é do governo’. 

Em uma paisagem cultural desenhada por essa regularidade, deparamo-nos com a presença cotidiana e histórica de várias ações negativas e destrutivas, acontecendo em diversos lugares e tempos, sendo realizadas por diferentes sujeitos. Nesse sentido, são emblemáticas ações do tipo: receber notas em atividades escolares, nas quais o estudante não participou; usufruir de bolsas de estudo sem atender os requisitos estabelecidos; transferir para o estudante tarefas que são da responsabilidade e da competência do docente; citar em textos pessoais ideias e frases alheias sem fazer referência a fonte; formular conclusões sem as devidas evidências comprobatórias; adulterar documentos; organizar concursos e remoções de servidores ou docentes sem publicidade e impessoalidade; receber salário sem trabalhar efetivamente; trabalhar menos do que determina o contrato; comprar e não pagar; furar fila; prometer o que não pode ser realizado; sonegar imposto; adulterar o peso dos produtos; vender produtos com a data de validade vencida; estacionar em lugares proibidos; apresentar notas fiscais frias; superfaturar serviços e produtos; executar sem planejar; receber por um serviço que não foi ou será executado; obter benefícios sexuais a partir do poder que se tem (assédio sexual), introduzir assuntos distintos do objeto da matéria ou do projeto (jabuti); apossar-se do que pertence ao outro (roubo); negociar emendas em troca de dinheiro (propina); comprar votos (crime eleitoral); empregar familiares em serviços públicos (nepotismo); trocar favores em espaços públicos (clientelismo e fisiologismo), anunciar serviços e produtos inexistentes (propaganda enganosa); expropriar o trabalhador do resultado do seu trabalho (mais valia); realizar atividades laborativas e remuneradas durante a infância (trabalho infantil); realizar atividades laborativas sem remuneração (trabalho escravo); comercializar pessoas (tráfico humano), agir com as pessoas a partir de critérios relacionados ao sexo, à identidade de gênero, à orientação sexual, à crença, à etnia, à origem social, à deficiência física e à escolarização (preconceito e discriminação); falar o que não acontece e não existe (mentira); intimidar o subordinado no local de trabalho por meio de um poder hierárquico (assédio moral); desqualificar e denigrir a imagem das pessoas (dano moral); introduzir na natureza substâncias nocivas (crime ambiental); etc.

Ter consciência da realidade dessas ações, atitudes, condutas, procedimentos e práticas culturais sugere, no nível da fala e da escuta, o cultivo de uma posição crítica sobre o conjunto de coisas efetivamente ditas, cuja regularidade sinalizaria a existência de uma fala fundada no referido território cultural. Nesse caso, vale o alerta presente no dito popular bíblico: ‘a boca fala do que o coração está cheio’. Em outros termos, cada uma fala a partir do lugar em que se encontra e diz o que sabe e aprendeu. Ora, se a experiência e o lugar de vivência do falante estiverem localizados e alimentados no e pelo cenário da cultura da malandragem e da corrupção, podemos cogitar a possibilidade de que sua fala acione uma série de ditos próprios dessa matriz cultural. 

Considerando essa reflexão e pressupostos, como pertinentes, apropriados e verdadeiros, podemos formular a seguinte conclusão: o exercício da escuta cuidadosa e crítica de falas proferidas em conversações cotidianas, materializadas numa série de formulações, anunciadas por diferentes falantes em circunstâncias e situações diversas, casuais e cotidianas, possibilita a identificação de um tipo de fala, associado à dimensão da cultura da malandragem e da corrupção, denominado, aqui, de ditos espertos, cujo desenho organiza-se em torno de um jogo argumentativo pautados em função do desejo de ‘tirar vantagem em tudo’, de ‘vencer independente dos meios’, de ‘ser o melhor e o mais forte’ a fim de poder sempre ‘fazer festa com o chapéu alheio’.


João Pessoa, 07 de dezembro de 2015.

sábado, 28 de fevereiro de 2015

O DITO E O DIZER PRAGMÁTICO II



Por Erenildo J. C.


A escuta cotidiana de falas aleatórias e casuais, assim como de conversas sistematizadas em espaços institucionais, ou, ainda, de pronunciamentos postos em circulação por meio da mídia escrita e falada, evidencia a existência irrefutável de práticas culturais conversacionais assentadas no dizer e nos ditos pragmáticos.


A observação reflexiva que registrei no escrito anterior explicitou, em primeiro lugar, que os dizeres e ditos pragmáticos possuem, como centro de equilíbrio e constituição, uma fala orientada por interesses determinados. Em segundo lugar, que, em função desses interesses, o dizer pragmático aciona, mobiliza e articula uma série de ditos, cuja natureza e especificidade se encontra em sua utilidade, isto é, na possibilidade dos ditos selecionados serem apropriados e empregados na perspectiva dos interesses agendados. Em terceiro lugar, que o conteúdo das coisas ditas não tem valor em si, ou seja, não importa que o que esteja sendo dito pelo falante pragmático seja verdadeiro ou falso, real ou imaginário, certo ou errado, permitido ou proibido, normal ou louco, racional ou emocional. A relevância ou não do conteúdo dito é avaliada, medida e valorada em função de sua utilidade, isto é, de sua eficiência e eficácia na execução dos fins estabelecidos e anunciados. Em quarto lugar, que o falante pragmático não tem nenhum comprometimento e responsabilidade com o dizer ético e sincero, verdadeiro e edificante. 

Além desses aspectos, nota-se, também, que a fala pragmática traz à luz outros elementos significativos, a exemplo de sua forte tendência de construir vínculos com fins subjetivos e de fazer uso de procedimentos argumentativos interpretativos. A subjetividade e a interpretação tornam-se, nesse sentido, um terreno fértil para o aparecimento e a proliferação dos ditos pragmáticos. 

Do ponto de vista subjetivo, qualquer interesse pode ser justificado e legitimado, ou seja, erigido como significativo e pleno de sentido. Aqui, encontram-se os mais variados tipos de fins subjetivos, a exemplo dos baseados em preferências, biografias pessoais, tradições culturais, sectarismos religiosos assumidos, tendências científicas dominantes, fidelidades políticas e filosofias de vida. Do ponto de vista interpretativo, qualquer conteúdo pode ser considerado relevante e válido, desde que seja útil à produção do convencimento e à defesa do interesse em jogo, seja ele constituído de saberes resultantes da vivência, de mitos e lendas consagrados, de revelações consideradas sagradas, de conhecimentos científicos cristalizados, de ideologias compartilhadas e concepções políticas aceitas, de normas jurídicas asseguradas ou de narrativas literárias e imaginárias circulantes.

Com efeito, verifica-se que as falas pragmáticas, hegemônicas em nossa sociedade, possibilitam a constatação, de um lado, da subjetividade como uma das fontes do aparecimento de fins pragmáticos, de outro, da interpretação como uma ferramenta apropriada ao jogo argumentativo e conversacional pragmáticos. Fonte e ferramenta do dizer pragmático, da criação e da proliferação infinita dos ditos pragmáticos, a subjetividade e a interpretação se ligam entre si, integrando e compondo, tecendo e consolidando o modo de existência próprio do dizer pragmático.


João Pessoa, 28 de fevereiro de 2015

sábado, 31 de janeiro de 2015

O DITO E O DIZER PRAGMÁTICO I



Por Erenildo J. C.

Tenho refletido, nos escritos anteriores, sobre a região da linguagem designada de dizeres e ditos. Tal região vem à luz, isto é, ganha existência e inteligibilidade através da fala. Por meio dela, ou seja, da articulação de séries significativas de som, o sujeito falante, ‘ao dizer algo sobre alguma coisa’, proporciona ao sujeito ouvinte o registro simultâneo da maneira como diz, isto é, do modo como argumenta, profere, pronuncia e formula o conteúdo das coisas ditas, assim como o sujeito efetiva, concretiza, objetiva e materializa, foneticamente, por meio de sintagmas, frases, assertivas e formulações diversas e determinadas, o significado, o sentido, o saber e o entendimento que possui, assume, escolhe, valora e aciona em sua fala. 

Em função disso, torna-se possível, de um lado, identificar e analisar, nas falas dos sujeitos falantes e dos ouvintes, que o dizer (o modo) e o dito (a formulação) são coisas distintas tanto quanto dois aspectos inseparáveis, ontológicos da fala.

De outro, permite que seja realizada a investigação e a análise, desses constituintes da linguagem, nas conversas, nos diálogos, nos debates, em suma, no agir comunicativo estabelecido entre sujeitos falantes e ouvintes, emissores e receptores, situados em tempos e lugares sociais distintos e diversos.

Quando consideramos esse pressuposto como correto, abre-se um campo de observação, reflexão, estudo e pesquisa sobre o dizer e o dito, enquanto duplos inseparáveis da linguagem. Assim, ao nos dispormos conhecê-los, isto é, a ouvir os sujeitos falantes concretos no cotidiano, situados em diferentes espaços formais e não formais, a exemplo das escolas, das mídias, das instituições religiosas, dos partidos políticos, dos espaços governamentais, da sociedade civil organizada e da iniciativa privada, poderemos confirmar e conhecer a existência dos dizeres responsáveis pela produção e proliferação de séries peculiares de ditos, grávidos de formulações específicas, de delimitações e articulações determinadas entre dizeres e ditos particulares, a exemplo dos pragmáticos. 

Ao longo das análises empreendidas sobre as falas cotidianas, tenho encontrado constantemente com ditos, produzidos por ‘um modo de dizer as coisas’, totalmente descomprometidos e sem responsabilidades éticas, profundamente despreocupados com questões relativas à verdade ou à falsidade, ao normal ou ao anormal, ao certo ou ao errado, ao possível ou ao impossível, ao real ou ao imaginário. Tenho constatado que as coisas ditas, produzidas no universo desse dizer, são acionadas e mobilizadas, articuladas, significadas e ressignificadas, construídas e desconstruídas, negadas e afirmadas, valorizadas e silenciadas, desde que sejam úteis aos objetivos do sujeito falante, desde que sejam eficientes para realizar o fim proposto e desejado por ele.

Devido a centralidade que os referidos ditos e dizeres conferem a utilidade e a eficiência das coisas ditas e a função que seu conteúdo e suas estratégias têm no convencimento dos sujeitos ouvintes, no que tange aos fins pretendidos pelo sujeito falante, podemos identificá-lo e nomeá-lo como pragmático. 

Por conseguinte, pode-se dizer, resumidamente, que o dizer e o dito pragmático desenham uma espécie de fala que advoga a favor de interesses determinados. Em face desses interesses, os ditos e os dizeres mobilizam, articulam e empregam uma série de elementos úteis, sejam eles verdadeiros ou falsos, certos ou errados, permitidos ou proibidos, loucos ou normais, imaginários ou reais, desde que sejam coadjuvantes na efetividade do interesse em questão.

Os ditos e os dizeres pragmáticos são modalidades dos dizeres e ditos retóricos, já tratados em um escrito anterior. Considerando a presença intensa e diversa dos ditos e dizeres pragmáticos, de sua forte presença no agir comunicativo dos sujeitos falantes encontrados em diversas situações de conversação do cotidiano, arrisco-me a formular a hipótese de que vivemos sob a égide da hegemonia do signo de falas pragmáticas.

A tomada de consciência desse acontecimento sugere que o sujeito ouvinte desenvolva uma escuta vigilante, crítica e duvidosa seja com relação ao conteúdo e às estratégias, seja com relação à sinceridade e aos propósitos dos sujeitos falantes. 

Portanto, o reconhecimento desse fato cultural da comunicação contemporânea exige uma escuta reflexiva e crítica em relação às formulações pragmáticas difundidas por meio de pronunciamentos políticos, de propagandas que visam o consumo de bens e serviços, de pregações e anúncios religiosos, que objetivam a conversão e o governo dos indivíduos, de notícias postas em circulação pelas redes sociais e midiáticas que visão a formação de uma opinião pública sobre certos assuntos, assim como por meio de falas comuns, aparentemente inocentes, realizadas nas conversas diárias.



João Pessoa, 31 de janeiro de 2015.

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

DITOS RELIGIOSOS IV



Por Erenildo João Carlos


Nesse texto, objetivo complementar as reflexões anteriores sobre os ditos religiosos, assinalando achados já mencionados, e acrescentando outros à análise empreendida sobre a especificidade do modo de existência dos ditos e do funcionamento dos dizeres genuinamente religiosos.

Em primeiro lugar, uma questão de procedimento. Nossa investigação toma as falas casuais do cotidiano, como a fonte do exercício de escavação dos ditos e dos dizeres. Entendemos que os registros orais, mais precisamente, as falas se configuram como uma fonte rica de informações. Portanto, ouvi-las e observá-las atentamente, analisar seu conteúdo, adentrar no universo de seus elementos e combinações constituintes, descrever suas regras de funcionamentos, cria, sem sombra de dúvida, um campo de possibilidades de investigações, não somente sobre a diversidade de aspectos presentes no conteúdo, que os ditos circulam, como sobre a maneira de ser e funcionar do modo operandi de seu dizer. Tais reflexões e investigações, quando produzidas, de forma sistemática e rigorosa, podem problematizar uma série de saberes e de práticas sobre a linguagem, sobre a constituição da subjetividade dos indivíduos, seu modo de conceber e se relacionar consigo, com o outro e com o mundo. Os registros orais, com efeito, se configuram como uma via de construção de saberes específicos sobre o tecido cultural que organiza as relações sociais vigentes e dominantes, que desenha falas e dizeres possíveis.

Em segundo lugar, os registros orais, presentes nas falas cotidianas dos indivíduos, são tratados como mediação. Através de suas formulações (proferimentos, afirmações, comentários, anúncios, saberes...) podemos acessar os ditos e os dizeres praticados efetivamente, que, de certo modo, integram o processo cultural de produção capilar da circulação do conteúdo constituinte da subjetividade e da individualidade de indivíduos determinados, a exemplo do universo cultural composto pelas concepções de mundo, pelas regras de conivências, pelos princípios, padrões de conduta aceitos, modos de relações estruturados e organizados, a partir de valores positivados socialmente. 

Em terceiro lugar, os ditos e dizeres religiosos sinalizam que vivemos em uma sociedade que valoriza positivamente os artefatos culturais religiosos. Assim sendo, eles (ditos e dizeres) servem como fonte de informações sobre uma série de saberes religiosos, já cristalizados, objetivados e materializados em condutas, vivências, atos, gestos, práticas, rituais e textos institucionalizados, que reproduzem uma espécie de subjetividade e de individualidade, para o bem ou para o mau, pautada no critério da crença (parâmetro fundamental de produção e articulação dos artefatos culturais religiosos). 

Em quarto lugar, os ditos religiosos, circulantes em lugares e tempos diferentes, em circunstâncias e situações diversas, evidenciam um fato: a individualidade e a subjetividade religiosas são tecidas a partir de, pelo menos, três posições específicas: a primeira posição é a do indivíduo comum, sem vínculo confessional, que orienta seus saberes, consciência e conduta; suas decisões, seus sentidos de vida e seus relacionamentos consigo mesmo, com o mundo e com as outras pessoas a partir do parâmetro da crença; a segunda posição é do devoto, ocupada pelo indivíduo que professa uma determinada fé religiosa, e que, em função dela, esforça-se por adequar sua individualidade e subjetividade aos valores e doutrinas instituídos no e pelo campo religioso escolhido; e, por último, a posição do teólogo, acolhida pelo indivíduo responsável, comprometido e militante, que trabalha cuidadosamente na feitura do desenho discursivo, ideológico e doutrinário da crença em questão. Desenho que fundamenta, justifica e explicita a existência e o funcionamento das concepções religiosas, adotadas na vida das pessoas e da sociedade. Em resumo: as três posições encontradas foram: a do crente comum, que regra sua vida a partir do critério do ´creio logo existe´; a do devoto, que professa uma fé determinada como ‘único caminho, verdade e vida´; e a do teólogo, que estuda, sistematiza e produz um conjunto de argumentos racionais, ideológicos e pragmáticos, necessários ao reconhecimento da crença valorada positivamente e do convencimento das pessoas. 

Em quinto lugar, os três tipos de posições religiosas mencionadas, associadas à institucionalização da diversidade cultural das crenças religiosas positivadas, acabam pondo em circulação e reproduzindo, de modo capilar, o modo de existência singular dos ditos e dizeres religiosos, de um lado, pela formação de individualidades e subjetividades religiosas, de outro, pelo desenvolvimento e refinamento do arcabouço argumentativo erigidos como fundamento, justificava e legitimidade do conteúdo e da forma de uma crença determinada. A versão mais acabada desse processo ocorre quando uma entidade supra-humana, metafisica, transcendental é posta como o fundamento da crença em questão. Fecha-se, assim, o circuito argumentativo-teológico. Quando isso ocorre, temos o parâmetro, por excelência, da produção das falas genuinamente religiosas, que vinculam tanto o sentido e a razão, o começo e o fim da existência, da vida e do mundo, assim como o sofrimento e a felicidade, a produção e a reprodução dos acontecimentos existenciais e históricos, à vontade de um ser supremo.

Em sexto lugar, a assunção de uma entidade transcendental, como o fundamento último da crença religiosa, propicia o aparecimento e a proliferação dos ditos religiosos em sua forma mais pura, específica, plena e genuína. Em outras palavras, quando o dizer religioso dobra-se sobre si mesmo, operando a separação entre os elementos constitutivos de sua existência, a saber, os elementos da realidade e da transcendência, rejeitando o primeiro em função do segundo, o real deixa de ser o critério de aferimento da valorização positiva das coisas e, consequentemente, da crença compartilhada. Com efeito, quando esse acontecimento é produzido no âmbito do dizer religioso, anuncia-se o advento de um território transfigurado, ausente de realidade, vazio de referência, de remissão ao mundo natural e humano. Nesse lugar, a transcendência-simulacro reina e governa, exigindo o abandono, o distanciamento e a renúncia do real das falas dos interlocutores religiosos. Nesse território sagrado do dizer religioso genuíno, a entidade supra-humana e a transcendência-simulacro fundam o sentido, o valor e a verdade, definidoras do contorno das fronteiras do conteúdo e da forma das coisas ditas religiosas. 

Em sétimo lugar, a existência de um lugar vazio de realidade, das ´coisas do mundo´, erige o terreno fértil do dizer religioso, que propicia o aparecimento e o cultivo de diferentes tipos e gêneros de crenças. Ao se distanciar do real, cria-se um campo de possibilidades de emergência de crenças fundadas na intuição, na imaginação e na fantasia: o dizer religioso orienta-se por uma crença que não mais se nutre do saber e do conhecimento. Desse modo, no lugar sagrado do dizer religioso genuíno, a realidade somente pode entrar se for convidada. Quando convidada, somente deve comparecer e permanecer se aceitar o que se crê como certo, correto, verdadeiro e significativo. Nesse lugar do dizer, a realidade somente é acessada e mobilizada na feitura dos ditos, após um processo rigoroso de censura, isto é, de purificação, de conversão e de transfiguração. No solo sagrado da conversação religiosa o sujeito falante e o ouvinte devem aceitar, como rito de passagem e de inserção na comunidade religiosa, o sacrifício e a morte do real, como caminho de superação da ilusão e como via de iluminação da consciência.

Esperamos que as observações sistemáticas tecidas, a partir do material capturado nas falas casuais do cotidiano, e que a reflexão, a análise e a descrição efetivadas, aqui, colaborem para o despertar da curiosidade e do interesse pela realização de investigações e discussões sobre o funcionamento do modo singular de existência dos ditos e dizeres religiosos. 


João pessoa, 24 de novembro de 2014.

domingo, 26 de outubro de 2014

DITOS RELIGIOSOS III



Por Erenildo João Carlos


A realidade existencial, entendida, aqui, como uma série particular de fragmentos da totalidade das múltiplas e diversas experiências vividas cotidianamente pelo indivíduo e agrupamentos humanos, em contextos sociais e históricos específicos, ganha primazia nas considerações dos ditos religiosos. 

Nesse sentido, pode-se dizer que a realidade, como um acontecimento vivido, constitui o terreno empírico, o solo fecundo de onde brotam as necessidades, os desejos, os sonhos, as aspirações, as metas e os projetos de vida daqueles e daquelas que se reconhecem como religioso. Não tendo, nesse caso, nada de diferente de outros ditos que se apoiam na realidade para dizer o que querem dizer. A realidade é, portanto, o lugar de onde os ditos e dizeres religiosos retiram, extraem a matéria prima de parte de seu conteúdo. 

Desse modo, entende-se que sem o alicerce da rocha das coisas existentes, os ditos religiosos perderiam, em parte, seu significado, seu sentido, seu caráter de verdade e, consequentemente, a possibilidade de apresentar o que lhe é próprio, isto é, os valores que devem ser reconhecidos e aceitos como religiosos. Sem as coisas de fato existentes os ditos religiosos seriam palavras vazias, ocas, abstratas, sem sentido existencial, pertencentes ao mundo da fantasia, do faz de conta, a exemplo das coisas ditas, escritas e vistas no âmbito do domínio cinematográfico e literário. 

Com efeito, se consideramos, o real, isto é, o algo que de fato existe, como um dos conteúdos necessários à produção e à formulação de um determinado dito e dizer, a exemplo do religioso, encontramo-nos dispostos a aceitar o princípio de que não valeria apena dizer algo, se o que fosse dito e o modo de dizê-lo, não gerasse no outro a consciência de que o que está sendo dito, tivesse uma existência, de fato, efetiva e possível. Ou, inversamente, concordamos com a hipótese de que o que seja dito deverá ser dito de tal maneira que seja capaz de reproduzir na consciência do outro, pelo menos, uma representação imaginária com efeito de realidade. De modo que o outro, ao ouvir o que foi dito, seja convencido da realidade e da veracidade da mensagem anunciada. 

Estamos, assim, diante de um pressuposto que serve tanto para o dizer das coisas mais simples, próximas e familiares, como para o dizer das coisas mais complexas, distantes e estranhas! Sem fazer menção, sem ativar e articular o componente das coisas existentes, sejam elas naturais ou culturais, o dizer religioso perderia uma de suas principais forças de convencimento, de exercício de poder sobre a consciência, a vontade, a conduta, o cotidiano e os projetos de vida das pessoas! 

É em função do pressuposto de que o que está sendo dito seja real e verdadeiro que encontramos falas cotidianas, marcadas com o sentimento e a expectativa de que o que está sendo dito tem, de fato, sentido. Exemplos: ‘somente não ganha quem não joga’; ´o Brasil seria o favorito para conquistar a copa do mundo’; ‘o candidato X vencerá nas urnas’; ‘não se deve votar no candidato Y porque ele é corrupto’; ‘segundo a pesquisa feita a pedido de tal rede de televisão, o candidato Z será eleito’; devemos ‘consumir tal alimento, porque ele é saudável e nutritivo’; ‘a vida sedentária e ociosa é o motivo da origem de muitas doenças’; ‘a força do pensamento positivo cura’; ´a mente se libertará da ilusão do pecado ao se recitar ou se cantar tais palavras,’; ‘a crença em Deus é o sentido da vida’; ‘a vida se torna melhor estudando e trabalhando’; ‘as desigualdades capitalista serão superadas por meio da organização e da militância’; ‘comprando este ou aquele produto seremos felizes’; ‘fazendo o bem ao próximo, ocorrerá o mesmo conosco’ e ‘aqui se faz, aqui se paga’.

Esse conjunto de falas, exemplifica a presença de elementos de realidade que, combinada, associada e vinculada a algo anunciado, pode ou não acontecer, ter ou não ter referência na realidade. Exemplifica, também, que o modo como o dizer articula e constrói a junção entre os elementos presentes nas falas, geralmente, tem a pretensão de produzir, no ouvinte, um efeito de verdade, que, por sua vez, pretende conferir legitimidade, certeza e confiabilidade ao que está sendo dito.

Em uma conversação, ao ser ativado o sentido de realidade na consciência do outro, ou seja, quando o outro compartilha do que está sendo dito como algo verdadeiro, verifica-se, consequente, a possibilidade da aceitação de que o que está sendo dito tenha relevância. Nesse momento, ocorre uma experiência significativa: o algo que foi dito transcende sua existência empírica no seio do mundo como ‘algo em si mesmo’, e adquire um status de relevância ou importância no plano da consciência, do pensamento, da razão, do sentimento, do desejo, enfim, da subjetividade do indivíduo. 

Pode-se descrever a experiência desse acontecimento como uma espécie de transcendência: algo deixa de ser o que é ou parece ser, para se tornar outra coisa, em si mesma, ou para nós. Quando isto acontece, esse algo muda, ultrapassa, desloca seu status inicial, passando a ser outra coisa distinta do que era anteriormente. 

No caso específico da experiência da própria tomada de consciência da transcendência em nós, ou seja, da transformação do modo como nos relacionamos com aquela coisa existente, pode-se dizer que a transcendência acontece quando alcançamos um patamar de relação com a coisa existente a ponto de ela se apresentar para nós revestida de outro significado, sentido, valor. Nesse processo, parece até que a ‘coisa em si’ mudou, mas, ao fim e ao cabo, descobrimos que fomos nós que mudamos ao redimensionar nossa relação com ela, em face das coisas ditas que ouvimos. Em outras palavras, nossa consciência, em relação à ela, transcendeu do estado anterior para outro, a partir do modo diferente de relação que passamos a estabelecer com ela, pela mediação da conversa. 

Verifica-se que o dizer e os ditos religiosos realizam um modo particular de transcendência na consciência dos indivíduos falantes e ouvintes, em função do modo como estabelecem a vinculação entre o real e os outros elementos presentes na mensagem pronunciada. O modo singular da transcendência presente nos ditos religiosos consiste no fato de que o dizer religioso opera o reconhecimento da relevância das coisas, ou seja, atribui valor, significado e sentido as coisas existentes, por meio do redimensionamento da realidade a partir de diversos aspectos diferenciados e escolhidos, integrantes do universo do conteúdo da crença que falante e/ou ouvinte compartilha como certa e verdadeira. Assim, o real, seu conhecimento, seu reconhecimento e sua relevância aparecem nos ditos religiosos em grau, forma, intensidade e gênero em função do que o falante crê e de que o ouvinte deve ouvir. No dizer religioso, a crença apresenta-se como o critério determinante do processo de convencimento e de aceitação, produzido numa conversa. Em outras palavras, a transcendência religiosa pauta-se na valorização de algo a partir do apelo a fé, uma espécie de certeza daquilo que não se conhece de fato, mas que se crê que assim seja.

Ademais, nesse estágio de nossa investigação sobre o assunto em tela, pode-se dizer que embora a realidade e a transcendência apareçam como dois pilares fundamentais dos ditos religiosos, no jogo do dizer religioso, esses dois aspectos são vinculados, conectados, combinados, associados de modo tal que o conteúdo da mensagem transmitida ou comunicada seja capaz de afirmar, assinalar, de forma contundente e eficaz, algum ponto da crença compartilhada pelo indivíduo ou grupo social determinado. Nesse sentido, pode-se conceber a hipótese de que o binômio realidade-transcendência, presente nas falas religiosas, circulantes nas conversas cotidianas, produzidas em diversos lugares, tempos, situações e circunstâncias sociais, seria similar ao encontrado em mitos, lendas, narrativas e ensinamentos históricos que povoam o imaginário cultural religioso do povo brasileiro.


João Pessoa, 26 de outubro de 2014.